quarta-feira, 10 de março de 2010

Do antilírico, a semente[1]


Qualquer peça que traga em seu interior narrações e reflexões acerca de fatos situados no passado, históricos, jamais pode ter seu entendimento reduzido a um discurso de condenação de mentiras, nem tampouco pode ser encarada como um discurso de exaltação e apologia à ‘verdade’. Nós do movimento “Os Lírios não nascem da lei” possuímos consciência disso. Contudo, estamos convencidos também de que o discurso, por si só, já é um objeto de conflito no seio da sociedade e, neste contexto, a existência de diversas interpretações históricas cresce em importância no sentido de fundamentar coerentemente as situações e lutas do presente e do futuro.Traremos, assim, neste breve texto reflexões acerca de como se situava o Curso de Direito na conjuntura anterior ao surgimento do nosso movimento e, em seguida explicaremos como e com quais intuitos surge o “Os Lírios não nascem da Lei”.

O Curso de Direito da Universidade Federal do Maranhão há um bom tempo atravessa um período conturbado. Apesar de ter completado, em 2008, seus noventa anos de existência, tal longevidade não se reflete num ambiente acadêmico propício ao desenvolvimento de um ensino mais profundo, crítico, de ensejo à pesquisa e à extensão. Um curso como o nosso que, diremos, há muito atingiu a maioridade, não pode adstringir sua produção científica à realização de sínteses e à difusão de conhecimentos produzidos em outras Instituições de Ensino Superior. Salvo a realidade dos núcleos de pesquisa e extensão, os quais abrangem uma minoria ínfima do contingente de alunos no Curso, poderíamos dizem, sem embargos, que ação restrita à sala de aula quase constitui uma regra que nos situa à margem de uma real vivência do tripé universitário: ensino pesquisa e extensão.

Se por um lado o Curso vem respondendo insuficientemente à sua função de investigação científica e produção de conhecimento, não podemos olvidar também que muitos dos alunos que buscam a Universidade não ambicionam integrar o “monastério dos sábios” e unicamente produzir Ciência do Direito. Sem desejar esmiuçar tal fenômeno, diremos que é reflexo da mudança de postura da Universidade ao tentar romper com o casulo que a isolava da sociedade e, assim, passar a assumir outras demandas que não a produção de “saber desinteressado”. Entretanto, mesmo em relação a estes alunos o Curso não responde a contento. A falta de delineamento do que significa ensinar Direito e qual aluno se pretende formar, a defasagem da grade curricular e a falta de conciliação entre o conhecimento teórico e a prática jurídica, por exemplo, são episódios que refletem a inadequação do curso à realidade social do nosso país e também à ótica do mercado de trabalho.

Somando-se a isso, ao longo desses últimos anos, lamentavelmente vêm se arrastando uma série de deficiências e vícios que, vez ou outra, se acentuam e mostram sua sombria e desoladora face. Exemplos como a ausência de certos e conhecidos professores, que pouco ou nunca vão ministrar as aulas, as arbitrariedades praticadas por alguns destes e legitimadas pela Chefia de Departamento e/ou Coordenação, a infra-estrutura precária das sujas e apertadas salas de aula e a biblioteca com poucos volumes e desatualizada mostram um panorama da situação. Especificamente quanto ao corpo estudantil, ele minimamente ou sequer interfere enquanto protagonista do curso, muitas vezes sem tomar a dimensão de que a maneira como atua na universidade influencia definitivamente na vida acadêmica. Assim, quando por parte dos estudantes não há reivindicação do direito de participar da construção do plano político-pedagógico do Curso, ainda que mediatamente, tem se legitimado muitas dessas situações desalentadoras.

Em meio a este “tempo de homens partidos”, nasceu o Movimento “Os Lírios não nascem da lei”. Além da fusão dos sentimentos de inquietação frente aos problemas acima expostos, os quais de início uniram fortemente os integrantes do nosso movimento, foi a crença comum de que ainda é possível reverter esse quadro e lutar para garantir os direitos dos estudantes, através da organização e mobilização coletiva, que consolidou o movimento. Acreditamos, sim, ser possível fazermos nascerem coisas belas quando acreditamos e lutamos juntos. Ao pensarmos ser a luta pela efetivação de direitos, pela construção de um saber crítico e atencioso à realidade histórico-social em que nos inserimos aquilo que norteia nossa formação durante a faculdade, nos habilitamos para, no futuro, agirmos não como perpetuadores da desigualdade vigente, mas para nos posicionarmos sempre em busca da ordem jurídica justa.

O nome do movimento, a propósito, foi retirado de um verso do poema “Nosso Tempo” de Carlos Drummond de Andrade e se coaduna com a ideologia do grupo. Afirmando que mesmo passando por ela, o Direito e a Justiça não se esgotam na Lei, expressamos, com efeito, posição contrária à tecnicista que muitas vezes é posta ou surge no aluno na academia. Trazer a linguagem poética para o Direito simboliza, portanto, uma tentativa de libertá-lo do seu sono dogmático, de fazer entender que além de leis, doutrina, jurisprudência e afins, existem outras formas de linguagem válidas que expressam um Direito mais próximo da sociedade e dos seus anseios últimos de justiça, situando-o entre a razão e a sensibilidade. Algumas associações como Direito e Literatura, Direito e cinema, por exemplo, permearão nossos discursos e projetos constituindo, assim, parte do esforço de inflar novos ares aos corredores. Ares que respeitem o pluralismo político, filosófico, ideológico, religioso e a liberdade de expressão.



[1] Texto produzido por Paulo César di Linharez, acadêmico do 3º período, turno noturno, em parceira com Thiago Gomes Viana, acadêmico do 9º período, turno noturno e Carlos José Everton, 4º período, turno matutino.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Sobre a criação do mundo e os Lírios que não nascem da lei

Desde o início das coisas o mundo é poesia. Lá nos confins do tempo, do alto de seu vasto e tedioso céu, Deus orquestrou sozinho o mais belo concerto que já se viu, regeu uma explosão tão grande e tão mais linda que qualquer coisa que avistara à época. De mil e milhões de Megatons, fez-se tudo daí - sete dias de poiesis, aisthesis e katharsis! Se deliciou com os contornos de sua obra, fez arte, ar, terra, água, fogo, periquito, galinha e papagaio. Por fim, fez de si mesmo uma arte e se consubstanciou no chão. Brotou, então, da terra, a imagem e semelhança de Deus.
Mas Deus, que de tudo sabia, não esqueceu o que viria a produzir sobre hermenêutica das artes. Sabia que apesar de ter criado horizontes estéticos, sua obra ganharia as ruas e as múltiplas interpretações. Era algo inerente à própria criação artística. Como não esperar que preenchessem os espaços da sua obra com tantos significados, se ele mesmo havia dotado sua mais perfeita criação de razão própria e de livre-arbítrio? Era esperar pra ver...
A transmutação da arte divina foi inevitável. Tudo quanté criatura se sentiu na qualidade de co-autor, de escritor do seu destino e do destino de todo o resto. Aos trancos e barrancos a poesia subsistiu. Horas um lirismo embevecente, outras, versos decadentes. Quantos não foram os que criaram o belo e o justo onde Deus quase já havia desistido? Na outra mão, quantos não quiseram, às paisagens, impor molduras, impregnar o livre texto com tolas regras de acentuação? Era um contrabalanço perigoso. Se, num piscar de olhos, Deus desse um cochilo, podia ser que o mundo não resistisse a tal tensão.
A Universidade Federal do Maranhão não estava à margem dessa interação artística. Indiretamente também era obra de Deus. O curso de Direito, então, nem se fala... Entretanto, algo parecia estar correndo errado por ali. Alguns indivíduos começaram a levar tanto à risca a idéia de razão própria e de livre-arbítrio que da própria razão edificaram “A razão” e do seu arbítrio fizeram lei - compuseram versos decadentes de tal estirpe que comprometeram seriamente todo o horizonte estético e suprimiram a auto-estima do curso. À poesia, sequer ofereceram um consolo: um marasmo antilírico servia de combustível à situação.
Sob o risco de sucumbir ante essa penumbra, a Universidade clamava por mudança. O justo e o belo ainda podiam ser construídos ali, ainda pulsavam peitos pelos corredores. O prenúncio do poeta encontrava, assim, um meio para se propagar - era possível se ouvir o eco, ainda que distante: “As leis não bastam, os lírios não nascem da lei”. Como foi alentador perceber que em meio ao monstro de concreto uma flor poderia surgir do chão. Os lírios brotam da terra, um peito pulsante pensou. E o curso de Direito nunca mais havia ser o mesmo.


(Paulo César di Linharez - acadêmico do 3º período, turno noturno)